Estudo
comprova que zika causa microcefalia
Fêmeas de camundongo infectadas com o vírus durante
a gestação geram filhotes com cérebro pequeno e danos neurológicos
Neuroesfera
infectada por vírus zika brasileiro (esquerda) e sadia (direita)
Um estudo publicado hoje (11 de maio) no site da
revista Nature apresenta as evidências que faltavam de que o vírus zika
causa microcefalia. No trabalho, pesquisadores brasileiros demonstraram que a
variedade do vírus em circulação no país é mais agressiva do que a africana. A
cepa brasileira – no artigo, eles a identificam pela sigla ZIKVBR –
consegue atravessar a placenta de fêmeas de camundongo com o sistema
imunológico debilitado e prejudicar o desenvolvimento dos filhotes. Os roedores
nascem miúdos e com menos da metade do peso normal, além de, como esperado,
apresentarem o cérebro menor do que o de filhotes saudáveis.
A variedade brasileira do zika
causa morte celular mais acentuada e disseminada do que a cepa africana, que
foi isolada em 1947 do sangue de um macaco naturalmente infectado com o vírus,
e que, até então, havia sido usada nos trabalhos indicando o efeito devastador
do zika sobre o sistema nervoso central. Assim como o vírus africano, o zika
brasileiro invade e danifica preferencialmente os chamados precursores neurais
ou neuroprecursores, células imaturas que originam os diferentes tipos de
células cerebrais e são abundantes nos estágios mais iniciais de
desenvolvimento do feto.
“Esse é o primeiro trabalho feito
com a variedade do zika em circulação no país”, afirma a neurocientista
Patrícia Beltrão Braga, chefe do Laboratório de Células-Tronco da Faculdade de
Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP). Ela é
uma das coordenadoras do estudo da Nature. “O vírus que usamos foi
isolado pelo grupo do virologista Pedro Vasconcelos, da Fiocruz no Pará, de um
bebê com microcefalia que morreu pouco após nascer”, conta a pesquisadora, que
integra a Rede de Pesquisa sobre Zika Vírus em São Paulo (Rede Zika), apoiada
pela FAPESP.
Do final de 2015 para cá, vêm se
acumulando evidências de que o vírus zika era o agente patológico por trás de
parte dos casos de microcefalia identificados no país, tanto que no final de
março a Organização Mundial da Saúde afirmou um “forte consenso
científico” de que o zika causava o problema. Nesse pouco tempo já se tinha identificado
sinais de que o zika atravessava a placenta humana, o órgão que mantém o feto
conectado ao corpo materno durante a gestação. O vírus havia também sido
isolado do cérebro de bebês com microcefalia. Além disso, experimentos em
laboratório feitos por outros grupos no Brasil e no exterior mostraram, ainda,
que o vírus podia infectar células humanas precursoras do sistema nervoso
central e matá-las (ver Pesquisa FAPESP nº
242).
Mas sempre havia alguma brecha
para questionamentos. “Não era possível saber se era realmente o zika ou havia
algum outro fator associado causando os casos de malformação no Brasil”, conta
o neurocientista brasileiro Alysson Muotri, pesquisador da Universidade da
Califórnia em San Diego e um dos coordenadores do estudo publicado na Nature.
“Nosso trabalho mostra que o vírus zika brasileiro é suficiente para causar
microcefalia e outros problemas congênitos”, diz Muotri.
Mais
sobre o vírus Zika
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Sistema imune debilitado
No entanto, nem sempre isso acontece. Um dos
resultados que chama a atenção no estudo da Nature é que mesmo o ZIKVBR,
a variedade mais agressiva do vírus identificada até agora, só causa microcefalia
nos filhotes de roedores que apresentam o sistema imunológico um pouco mais
debilitado.
No Laboratório de Interações
Neuroimunes da USP, Jean Pierre Peron e sua equipe injetaram o vírus na
corrente sanguínea de fêmeas de camundongo prenhes de duas linhagens distintas
– a C57BL/6, com sistema de defesa mais robusto, e a SLJ, cujas células
produzem menos interferon, um tipo de sinalizador químico que as protege da
invasão por vírus. Ao nascer, apenas os filhotes da linha SLJ eram menores,
sinal de que sofreram restrição de crescimento no interior do útero, e
apresentavam danos no cérebro semelhantes aos observados em seres humanos.
“Esse modelo parece simular bem o que ocorre durante a gestação, período em que
o sistema imunológico sofre certa supressão, permitindo que o embrião se
implante no útero e o feto se desenvolva”, conta Patrícia, que também é
professora de embriologia.
Os resultados distintos
observados com as duas linhagens de roedores podem explicar, segundo Peron, por
que nem toda mulher que é infectada pelo vírus zika durante a gestação vai ter
um filho com microcefalia. “As características genéticas da mãe, um dos fatores
determinantes do perfil imunológico, parecem ser importantes para impedir que o
vírus de chegar ao feto”, diz o neurocientista, que também integra a Rede Zika.
Uma de suas hipóteses é que mulheres com certas variações nos genes contendo a
receita para a produção de interferon ou que regulam a síntese desse
comunicador químico sejam mais susceptíveis à infecção pelo vírus e,
consequentemente, a ter bebê com microcefalia. “Mas isso ainda é algo a ser
testado”, diz Peron.
Versão BR, mais agressiva
A confirmação mais contundente de
que o zika em circulação no Brasil é mais agressivo do que o vírus africano
veio dos experimentos com células cultivadas no laboratório de Patrícia Beltrão
Braga, da FMVZ-USP. Ela e sua equipe extraem células-tronco adultas do dente de
leite de crianças saudáveis que participam do projeto Fada do Dente, que
investiga autismo e distrofia muscular, e as reprogramam quimicamente para se
transformarem em células mais versáteis: os progenitores neurais, capazes de
originar diferentes células do tecido cerebral. Colocados em uma matriz
tridimensional, os progenitores neurais formam esferas microscópicas
(neuroesferas). Com o tempo, as células da neuroesfera originam diferentes
tipos celulares que se organizam em camadas como se fossem minicérebros.
No laboratório de Patrícia, as
biólogas Fernanda Cugola e Isabella Fernandes infectaram as neuroesferas e os
minicérebros com a variedade brasileira e a africana do zika. Já no primeiro
dia, o vírus invadiu os progenitores neurais e começou a se multiplicar. No
quarto dia após a infecção, os resultados eram bem visíveis. As neuroesferas
infectadas pelo ZIKVBR tinham cerca de um quarto do tamanho das
infectadas pelo vírus africano e quase um décimo do tamanho das cultivadas
livres do vírus. O zika também causou deformações em sua estrutura – quanto
maior a quantidade de vírus, mais intensos eram os danos.
Além de deixar as neuroesferas
deformadas, o vírus impediu que sua células migrassem, fenômeno em que se
deslocam perifericamente para povoar diferentes regiões cerebrais. Minicérebros
infectados pelo zika em circulação no Brasil apresentaram redução da espessura
da camada correspondente à que origina o córtex cerebral, a camada mais
superficial do cérebro e mais afetada nos bebês com microcefalia causada por
zika. Embora mantenha quase 90% de similaridade genética com o vírus africano,
o zika brasileiro já é bastante diferente: em minicérebros de chimpanzé, ele
não afetou as células que geram o córtex. “Isso indica que o vírus brasileiro,
além de mais agressivo, possivelmente é mais adaptado a se replicar em células
humanas”, diz Muotri.
As alterações no tamanho e na
estrutura das neuroesferas e dos minicérebros são decorrentes da morte das
células. No estudo da Nature, os pesquisadores constataram que são
frequentes dois tipos de morte celular: a apoptose, ou morte programada, e a
autofagia, uma forma de destruição mais drástica em que a célula dissolve seu
conteúdo.
Um dos aspectos mais importantes
desse trabalho, segundo Peron, é estabelecer um modelo animal para investigar
os mecanismos de lesão do vírus. “Ele também pode ser útil para realizar os
testes iniciais de compostos candidatos a vacina e a medicamento antiviral”,
conclui.
Artigo
científico
CUGOLA, F. R. et al. The Brazilian Zika virus strain causes birth defects in experimental models. Nature. on-line, 11 mai. 2016.
CUGOLA, F. R. et al. The Brazilian Zika virus strain causes birth defects in experimental models. Nature. on-line, 11 mai. 2016.
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