ESTRATÉGIAS SUBTERRÂNEAS
Especializações nas raízes permitem
que plantas vivam no ambiente infértil dos campos rupestres
retirado da revista PESQUISA FAPESP
MARIA GUIMARÃES | ED. 229 | MARÇO
2015
© RAFAEL OLIVEIRA
Paisagem
típica de campo rupestre na serra da Canastra
Quando
partiram para examinar com olhar botânico a vegetação da serra do Cabral, em
Minas Gerais, o biólogo Rafael Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), e seus alunos estavam preparados para surpresas. Nesse ambiente em
que as plantas crescem sobre rochas ou em meio a uma areia tão branca que
parece sal, e por isso conhecido como campo rupestre, é surpreendente que elas
encontrem maneiras de sobreviver. Conseguem graças a um arsenal de truques que
os pesquisadores mal começaram a desvendar. E a variedade também surpreende: um
levantamento ainda não publicado, liderado pelo biólogo Fernando Silveira, da
Universidade Federal de Minas Gerais, estima que há cerca de 11 mil espécies
(um terço da biodiversidade vegetal brasileira) numa área que não chega a 1% do
território nacional, salpicada principalmente ao longo da serra do Espinhaço.
“Ainda estamos longe de entender os mecanismos evolutivos que geram e mantêm
essa diversidade”, afirma Oliveira, que participou do levantamento.
À primeira vista, a equipe da Unicamp reparou que
apenas quatro espécies eram comuns nas áreas de areia, solo quase desprovido de
água e nutrientes, e que uma delas aparecia sempre perto de uma planta
diferente, entre outros achados. “Tinha que haver algo especial para
possibilitar essa existência”, relembra Oliveira. Uma dessas soluções, comum
nos campos rupestres, é ser carnívora. A delicada Philcoxia minensismantém suas minúsculas folhas
grudentas enterradas na areia, onde captura e digere vermes subterrâneos,
conforme mostra artigo publicado em 2012 na PNAS, resultado do
trabalho de iniciação científica do biólogo Caio Pereira (ver Pesquisa FAPESP nº 194). É a primeira vez
que se identifica a capacidade de consumir animais numa espécie da família das
plantagináceas, ampliando o alcance conhecido dessa estratégia. Mas a paisagem
guardava outras novidades. Ao desenterrar cactos da espécieDiscocactus placentiformis, uma esfera espinhuda que
deixa apenas a parte de cima exposta, eles viram curiosas raízes revestidas da
fina areia. “Mesmo quando lavamos, a areia não sai”, conta Oliveira.
Investigar que substância essas raízes estão
liberando, e que função ela cumpre, foi o trabalho de mestrado de Anna Abrahão
e exigiu uma solução pouco ortodoxa: cultivo hidropônico na casa de vegetação
do Laboratório de Ecologia Funcional de Plantas, coordenado por Oliveira. A
ideia de manter submersas em água as raízes de plantas que normalmente mal se
regam foi vista com descrédito por colegas, mas era a única maneira de
controlar a quantidade de nutrientes disponível. “No solo nunca sabemos quanto
fica disponível para a planta, porque as substâncias formam compostos difíceis
de quebrar”, explica o biólogo.
Mais
uma surpresa: a água em excesso não se revelou um problema, mas a quantidade de
nutrientes era um fator mais crítico do que eles imaginavam. Numa tentativa
anterior de cultivar plantas de campos rupestres em laboratório, Oliveira
diluiu pela metade o fertilizante comercial, levando em conta a pobreza de
nutrientes do ambiente natural em que vivem. Todas morreram intoxicadas pelo
excesso. “Só conseguimos quando o composto de nutrientes estava com um décimo
da concentração original.”
Com
o artifício de manter as raízes desenterradas, foi possível enxergar a formação
dos aglomerados de pelos radiculares que secretam substâncias conhecidas como
carboxilatos e mantêm a areia grudada neles. Esses carboxilatos quebram os
compostos de fósforo, alumínio e ferro presentes na areia, nesse formato
indisponíveis para as plantas. Assim elas conseguem absorver o fósforo, essencial
para diversas funções vitais (como fazer fotossíntese e construir o material
genético) e escasso nesse solo formado a partir de quartzo. “Essa secreção é
uma inovação impressionante”, explica Oliveira. “Ela manipula o solo
quimicamente, outras plantas não conseguiriam sobreviver nessas condições.”
© RAFAEL OLIVEIRA
Neblina:
fonte de umidade
Com isso, as raízes conseguem mobilizar não apenas
o fósforo, mas também outros micronutrientes importantes para o desenvolvimento
e o crescimento. Essas substâncias são tão raras nesses solos que chega a ser
difícil detectá-las pelos métodos habituais. O manganês, porém, mostrou-se mais
comum nas folhas de espécies com especializações nas raízes, a ponto de ser um
possível indicador desse tipo de estratégia, conforme artigo de fevereiro deste
ano na Trends in Plant Science.
O experimento com os cactos, cujos resultados foram
publicados em outubro de 2014 na revista Oecologia, também
mostrou que quando há mais fósforo no solo as raízes respondem fabricando menos
carboxilatos. “As plantas têm uma série de estratégias numa escala bem pequena,
com soluções adaptativas mais diversas do que imaginamos”, diz o pesquisador da
Unicamp.
A descoberta de que os Discocactus usam esse artifício para obter
nutrientes também foi surpreendente porque os cactos são uma família conhecida
por fazer associações com fungos em suas raízes, as chamadas micorrizas, que
transferem fósforo para a planta e ganham carbono dela. “O editor do artigo
achou que fosse impossível, já que é uma família micorrízica”, lembra Oliveira.
Para ele, trata-se de um indício de como o arsenal diverso das plantas é
ignorado em grande escala, sobretudo nas condições extremas dos campos
rupestres, cuja fama ainda não se espalhou pelo mundo.
© RAFAEL OLIVEIRA
Sempre-viva: Actinocephalus polyanthus
A investigação dessa região permitiu a Oliveira pôr
à prova um modelo teórico desenvolvido pelo biólogo holandês Hans Lambers,
radicado na Universidade da Austrália Ocidental. Em artigo publicado em 2008 na
revista Trends in Ecology and Evolution, ele mostrou que nos
solos antigos, pobres em nitrogênio e fósforo, as micorrizas não são a
estratégia mais comum. Nesses ambientes o fósforo é uma limitação mais forte
que o nitrogênio, ao contrário do que acontece em solos mais jovens. Em seu
lugar, surgiriam as modificações de raízes como aglomerados de pelos e secreção
de carboxilatos. A sugestão se baseou em estudos feitos em duas regiões com
características muito semelhantes às dos campos rupestres: os fynbos, na África do Sul, e o kwongan, no sudoeste da Austrália. Fascinado com o
artigo, Oliveira, que estava no início de um projeto para avaliar as estratégias
de obtenção de água pelas plantas dos campos rupestres, aproveitou para incluir
os nutrientes nos estudos.
Com isso conseguiu fazer o primeiro teste da teoria
de Lambers – que nesse processo se apaixonou pelos campos rupestres e iniciou
uma parceria de pesquisa com o grupo da Unicamp, onde dará cursos em visitas de
um mês ao longo dos próximos três anos. Uma análise do solo da serra do Cabral
e de 50 das espécies de plantas mais importantes por ali indica que o campo
rupestre é de fato semelhante aos fynbos e aokwongan no que diz respeito à escassez de
nutrientes, sobretudo do fósforo. Também na obtenção de nutrientes mais por
meio de especializações das raízes do que de associação com micorrizas,
conforme mostra artigo que resultou do mestrado de Hugo Galvão e foi publicado
na New Phytologist de fevereiro deste ano.
© RAFAEL OLIVEIRA
Pico
das Almas, na Bahia
Uma das observações feitas pela estagiária Ana
Luíza Muler em viagens à serra mineira também rendeu um teste independente. Num
período que passou na Austrália, ela estudou duas plantas que costumam viver
próximas uma da outra, como é o caso de uma espécie da família das iridáceas
que costuma estar associada a uma sempre-viva na serra do Cabral. No caso
australiano era umaBanksia attenuata, cujas raízes
formam aglomerados que liberam carboxilatos e extraem o fósforo do solo, e uma Scholtzia involucrata, que não tem a especialização.
Num experimento relatado em artigo de 2014 na Oecologia, ela
mostrou que esta segunda planta cresce melhor na presença da outra espécie,
sugerindo que ela aproveita os nutrientes que se tornam disponíveis pela
alteração química do solo. Resta estudar o quanto isso acontece e como essas
plantas distintas convivem entre si.
Os
paralelos entre os continentes é um resquício de um passado muito distante em
que eles estiveram próximos, no supercontinente Gondwana. As famílias vegetais
que protagonizam essas descobertas são, em grande parte, representantes de
famílias que já existiam nesse período remoto: as proteáceas, cujas raízes
especializadas conhecidas nos outros continentes levaram o grupo de Oliveira a
procurar semelhanças por aqui, e as veloziáceas (canelas-de-ema) e
eriocauláceas (sempre-vivas), ambas com uma diversificação maior no Brasil do
que nos outros países. Os segredos que elas escondem na areia prometem mostrar
que os mecanismos conhecidos em florestas tropicais não são a regra, além de
pôr os campos rupestres na linha de frente dessa nova compreensão de como
plantas podem lidar com situações extremas.
Projeto
Mudanças climáticas em montanhas brasileiras: respostas funcionais de plantas nativas de campos rupestres e campos de altitude a secas extremas (n. 12/07271-7);Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Rafael Silva Oliveira (Unicamp); Investimento R$ 569.639,14 (FAPESP).
Mudanças climáticas em montanhas brasileiras: respostas funcionais de plantas nativas de campos rupestres e campos de altitude a secas extremas (n. 12/07271-7);Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Rafael Silva Oliveira (Unicamp); Investimento R$ 569.639,14 (FAPESP).
Artigos científicos
ABRAHÃO, A. et al. Convergence of a specialized root trait in plants from nutrient-impoverished soils: phosphorus-acquisition strategy in a nonmycorrhizal cactus.Oecologia. v. 176, n. 2, p. 345-55. out. 2014.
LAMBERS, H. et al. Leaf manganese accumulation and phosphorus-aquisition efficiency. Trends in Plant Science. v. 20, n. 2, p. 83-90. fev. 2015.
MULER, A. L. et al. Does cluster-root activity benefit nutrient uptake and growth of co-existing species? Oecologia. v. 174, n. 1, p. 23-31. jan. 2014.
OLIVEIRA, R. S. et al. Mineral nutrition of campos rupestres plant species on contrasting nutrient-impoverished soil types. New Phytologist. v. 205, n. 3, p. 1183-94. fev. 2015.
PEREIRA, C. G. et al. Underground leaves of Philcoxia trap and digest nematodes.PNAS. v. 109, n. 4, p. 1154-8. 24 jan. 2012.
ABRAHÃO, A. et al. Convergence of a specialized root trait in plants from nutrient-impoverished soils: phosphorus-acquisition strategy in a nonmycorrhizal cactus.Oecologia. v. 176, n. 2, p. 345-55. out. 2014.
LAMBERS, H. et al. Leaf manganese accumulation and phosphorus-aquisition efficiency. Trends in Plant Science. v. 20, n. 2, p. 83-90. fev. 2015.
MULER, A. L. et al. Does cluster-root activity benefit nutrient uptake and growth of co-existing species? Oecologia. v. 174, n. 1, p. 23-31. jan. 2014.
OLIVEIRA, R. S. et al. Mineral nutrition of campos rupestres plant species on contrasting nutrient-impoverished soil types. New Phytologist. v. 205, n. 3, p. 1183-94. fev. 2015.
PEREIRA, C. G. et al. Underground leaves of Philcoxia trap and digest nematodes.PNAS. v. 109, n. 4, p. 1154-8. 24 jan. 2012.
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