Terra frágil
E põe fragilidade nisso.
Nosso mundo é vivo e somos partes interdependentes, planeta e homens. Estamos fazendo
o papel de erva daninha. O planeta pode se livrar de nós.
Análises de imagens de satélite indicam perda de
266 mil km2 do Cerrado e 90 mil km2 da Caatinga, aumentando riscos de falta
d’água e de desertificação
CARLOS FIORAVANTI | ED. 231 | MAIO
2015
Queimada no Cerrado em 2006 no Parque Nacional das Emas, em Goiás |
Catolé do Rocha, município do sertão
da Paraíba com quase 30 mil moradores, está ficando ainda mais quente e seco, à
medida que a vegetação natural se esvai. Em oito anos, de 2005 a 2013, de
acordo com um estudo de pesquisadores de universidades da Paraíba e do Rio
Grande do Norte, a área de caatinga rala encolheu 48% e a de caatinga densa,
13,5%, enquanto a agrícola deu um salto de 823%, de 2,45 mil para 22,64 mil
hectares. Os autores desse levantamento concluíram que “a vegetação local foi
suprimida indiscriminadamente” e houve “um crescimento exorbitante” das áreas
ocupadas principalmente com a criação extensiva de bois.
Somando muitas situações como essa,
de 1990 a 2010 a Caatinga perdeu 9 milhões de hectares – ou 90 mil quilômetros
quadrados (km2), quase a área de Portugal – de vegetação nativa, em
consequência do desmatamento e da expansão da agropecuária e do uso de madeiras
de árvores nativas como fonte de energia (lenha) em residências e pequenas
indústrias, de acordo com um levantamento mais amplo publicado em março na
revista Applied Geography. Esse trabalho indica que, nesses 20
anos, a taxa de derrubada da vegetação natural aumentou na Caatinga (de 0,19%
ao ano de 1990 a 2000 para 0,44% ao ano na década seguinte), embora os
levantamentos do Ministério do Meio Ambiente indiquem uma queda do desmatamento
nesse ecossistema. Para os autores do artigo, a divergência decorre do conceito
de paisagem natural – eles preferiram não incluir as áreas cobertas puramente
por gramíneas, que o governo federal considerou – e da escala temporal (duas
décadas em um caso e quase uma década em outro).
A eliminação da vegetação nativa –
ainda mais prejudicial quando feita por meio do uso do fogo, que destrói a
matéria orgânica do solo – deixa a terra descoberta, com maior capacidade para
absorver a radiação solar, desse modo elevando a temperatura local, acelerando
a evaporação da água e diminuindo a resistência à erosão causada pelo vento e
pelas chuvas, que arrastam a matéria orgânica e reduzem a fertilidade de solos
pouco férteis e a capacidade de reter água. Além disso, alertam os especialistas,
a erosão causada pelas chuvas – raras, mas geralmente torrenciais – promove o
assoreamento de rios, aumentando o risco de inundações, e expõe as rochas antes
cobertas pela terra, dificultando a volta das plantas e mesmo o uso da terra
para fins agrícolas. Em Catolé do Rocha, a área exposta de rochas, os chamados
afloramentos, aumentou 27%, passando de 578 para 734 hectares, em oito anos.
Queimada no cerrado e buritizal de Boa Vista, Roraima, em 2014 |
Na Caatinga, outra ameaça, que se
agrava, é a desertificação. “O que mais contribui para desencadear o processo
de desertificação é o mau uso da terra, com o desmatamento e muitas vezes o uso
do fogo, agravado pelas condições climáticas”, diz Iêdo Bezerra Sá, pesquisador
da Embrapa Semiárido. Com sua equipe, ele examinou a região de Cabrobó, no
sertão de Pernambuco, um dos núcleos de desertificação do nordeste brasileiro,
a 400 km a sudoeste de Catolé do Rocha. Ali, os solos são arenosos, permeáveis
e incapazes de reter as águas das chuvas. Seus levantamentos indicaram que a
área com grau severo de desertificação, associado à ocupação agropecuária, era
já de 100 mil hectares (1 mil km2) e com grau acentuado, em terras
ocupadas pela caatinga arbórea, de 519 mil hectares (5 mil km2).
Sá está concluindo um levantamento
que indica que 9 das 12 regiões de Pernambuco – ou 122 dos 185 municípios do
estado –, principalmente no sertão, estão sujeitas a um risco elevado de
desertificação. Um de seus estudos recentes indicou que quase toda a região de
desenvolvimento do sertão do São Francisco, onde se cultivam frutas irrigadas,
encontra-se sob risco de se transformar em um areal estéril (75% da área
encontra-se sob risco moderado e 23% sob risco severo). Ali, ele explicou, o consumo
de água para a irrigação das plantações excede a capacidade dos rios, cuja
vazão diminui, prejudicando toda a área que percorrem. “A Caatinga é muito
frágil”, diz ele. “Em alguns casos, o melhor seria não mexer.”
Especialistas verificaram que 94% do
Nordeste brasileiro, além do norte de Minas Gerais e Espírito Santo, apresenta
uma suscetibilidade que varia de moderada a alta à desertificação e indicaram
as áreas com maior potencial de se tornarem areais estéreis até o ano de 2040.
Nesse levantamento, as áreas mais suscetíveis expandiram-se quase 5%, o
equivalente a 83 km2, de 2000 a 2010. “Esse estudo foi o primeiro no
Brasil a produzir um diagnóstico a partir da análise integrada dos principais
indicadores de degradação e desertificação”, diz Rita Vieira, pesquisadora do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e principal autora desse
estudo, publicado na Solid Earth. Segundo ela, os resultados foram
apresentados à Comissão Nacional de Combate à Desertificação, que orienta a
implementação de compromissos internacionais assumidos pelo país.
“Reduzir o risco de desertificação é
um processo lento. O primeiro passo é mudar a forma de lidar com a terra e
parar de desmatar”, diz Carlos Magno, um dos coordenadores do Centro Sabiá, uma
organização não governamental sediada em Recife. Com financiamento do governo
federal, o centro está trabalhando com 200 famílias de pequenos proprietários
rurais do agreste e do sertão de Pernambuco para recuperar 100 hectares de
áreas sujeitas à desertificação com os chamados sistemas agroflorestais, que
consistem no plantio de plantas diferentes como milho, feijão, abóbora,
batatas, forrageiras e frutas como umbu e cajá em meio à Caatinga.
“Estamos reconstruindo a ideia de que
a Caatinga é uma floresta e que precisa ser preservada”, diz Magno.
Xique-xique em solo rochoso da Caatinga de Caicó, Rio Grande do Norte: ambiente frágil |
No dia 16 de abril, ele saiu de seu
escritório em Caruaru e viajou 30 km até o município de Bezerros para
visitar Maria Idalvonete Julião da Silva, dona de 3 hectares, que
participa desse projeto. Motivada pela perspectiva de aumentar a produção
de alimentos mesmo em tempos mais secos, Idalvonete separou 1 hectare e plantou
palma forrageira e leucena, que servem de alimento para o gado, feijão guandu,
mamão e abacaxi. “Além de servir aos animais e às pessoas”, ele argumenta, “os
cultivos conservam o solo; a água, quando chega, fica no solo, cheio de raízes,
em vez de ir embora”. Em um levantamento com 15 famílias que adotam essa
estratégia há mais de 10 anos, ele verificou que “depois das grandes secas e
chuvas os sistemas agroflorestais voltam a produzir alimentos mais rapidamente
que os sistemas agrícolas convencionais, o que implica uma exploração excessiva
do solo da Caatinga.”
Cerrado
No estudo publicado na Applied Geography, a equipe coordenada por René Beuchle, do Joint Research Centre da Comissão Europeia, da Itália, examinou também outro amplo ecossistema brasileiro, o Cerrado, que perdeu ainda mais que a Caatinga. Em 20 anos, a área de Cerrado sofreu uma redução de 26 milhões de hectares – ou 260 mil km2, o equivalente ao dobro da área da Inglaterra, também pela expansão da agropecuária. Outra conclusão é de que a taxa de derrubada da vegetação natural caiu no Cerrado (de 0,79% ao ano de 1990 a 2000 para 0,44% ao ano na década seguinte), dessa vez concordando com as conclusões do governo sobre o recuo do desmatamento.
No estudo publicado na Applied Geography, a equipe coordenada por René Beuchle, do Joint Research Centre da Comissão Europeia, da Itália, examinou também outro amplo ecossistema brasileiro, o Cerrado, que perdeu ainda mais que a Caatinga. Em 20 anos, a área de Cerrado sofreu uma redução de 26 milhões de hectares – ou 260 mil km2, o equivalente ao dobro da área da Inglaterra, também pela expansão da agropecuária. Outra conclusão é de que a taxa de derrubada da vegetação natural caiu no Cerrado (de 0,79% ao ano de 1990 a 2000 para 0,44% ao ano na década seguinte), dessa vez concordando com as conclusões do governo sobre o recuo do desmatamento.
Para ver o que se passava na Caatinga
e no Cerrado, a equipe coordenada por Beuchle analisou 974 imagens do satélite
Landsat, com resolução de 30 metros, que registraram as mudanças na cobertura
vegetal do solo em 1990, 2000, 2005 e 2010 em 243 áreas amostrais, cada uma com
10 km por 10 km. Os dois ecossistemas cobrem 35% do território brasileiro e
estão entre os ambientes naturais mais ameaçados do planeta devido à conversão
de matas nativas para uso agrícola. Hoje a vegetação nativa da Caatinga ocupa
63% de sua área original e a do Cerrado, 47%, de acordo com esse estudo.
Levantamentos do governo federal consideram a área remanescente de cobertura
vegetal um pouco maior, nos dois casos. Há consenso, porém, de que a área de
vegetação nativa preservada por meio de unidades de conservação ainda é muito
limitada: 7,5% da Caatinga e 8% do Cerrado.
Um sinal do avanço da pecuária em Currais Novos, Rio Grande do Norte |
As transformações nesses ecossistemas
não são noticiadas tanto quanto as de outros dois biomas brasileiros, Mata
Atlântica e Amazônia, porque, em parte, não é simples detectá-las. Nas imagens
de satélite feitas na estação seca – e a maioria das imagens usadas são dessa
época, por causa da ausência de nuvens de chuva –, “é difícil separar as
árvores sem folhas do Cerrado e da Caatinga de outras coberturas da terra,
incluindo as áreas agrícolas”, diz Beuchle. Em contrapartida, as imagens da
Mata Atlântica e da Amazônia exibem um claro contraste entre a floresta alta e
densa e as áreas desmatadas, mais baixas.
Além disso, diferentemente da Mata
Atlântica e da Amazônia, a Caatinga e o Cerrado não foram reconhecidos como
patrimônios naturais. O Ministério do Meio Ambiente observa, em seu site:
“Devemos reconhecer que a Caatinga ainda carece de marcos regulatórios, ações e
investimentos na sua conservação e uso sustentável”. Segundo o ministério, uma
das medidas fundamentais nesse sentido seria a aprovação da proposta de emenda
constitucional que transforma a Caatinga e o Cerrado em patrimônios nacionais,
o que poderia facilitar a implantação de medidas voltadas à conservação desses
ambientes.
Edson Sano, pesquisador da Embrapa
Cerrados que trabalhou com Beuchle nessa análise, concluiu que a redução de
áreas de vegetação nativa, principalmente no Cerrado, reflete a expansão
agrícola do final da década de 1990, “quando a terra no Centro-Oeste ainda era
barata e a produção no Sul e Sudeste já estava saturada”. Segundo ele, a partir
do ano de 2000, porém, essa expansão desacelerou, por causa da elevação do
custo da terra, do aumento da fiscalização (hoje os fazendeiros têm de obter
autorização de órgãos federais ou estaduais para cortar a vegetação nativa, sob
o risco de perder o direito de uso da área) e dos ganhos de produtividade
proporcionados por novas tecnologias de cultivo. “Agora a tendência é de
redução”, diz ele.
No estado de São Paulo, de acordo com
o mapeamento mais recente, de 2010, o Cerrado ocupa 847,4 mil hectares, o
equivalente a 8,5% da área original, de 9,9 milhões de hectares, e apenas 25,9
mil hectares estão protegidos por algum tipo de unidade de conservação. Matas
desse tipo de vegetação ainda podem ser vistas nas regiões de Ribeirão Preto,
Franca, São José do Rio Preto, Bauru, Sorocaba e Campinas, entre outras,
acossadas pelas plantações de cana-de-açúcar (ver Pesquisa Fapespnº
170). “Para atingir as metas de recuperação de acordos
internacionais, que propõem a recuperação de 17% da área original terrestre de
cada bioma, teríamos de plantar cerca de 800 mil hectares de Cerrado em São
Paulo”, informa Marco Aurélio Nalon, pesquisador do Instituto Florestal e
um dos coordenadores do Inventário Florestal da Cobertura Vegetal Nativa do
Estado de São Paulo.
Com os números e os
mapas à mão, Nalon tem se reunido com outros especialistas de órgãos ambientais
do estado com o propósito de repor o que for possível das matas perdidas. Não é
só São Paulo que está se mobilizando. Em janeiro deste ano, o Ministério do
Meio Ambiente apresentou para debate público a versão preliminar do Plano
Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa, elaborado com base na Lei de
Proteção da Vegetação Nativa, de 2012, para incentivar o plantio de espécies
nativas, a restauração de áreas degradadas e as práticas agropecuárias que
favoreçam a recuperação de pelo menos 12,5 milhões de hectares de vegetação
nativa nos próximos 20 anos, por meio do plantio ou da restauração de áreas
degradadas.
Já existem técnicas agrícolas que
evitam o esgotamento do solo e reduzem a necessidade de outras terras para
cultivo ou pastagens. Sano destaca duas. A primeira é o rodízio de plantio: uma
parte da área de pastagem é ocupada com um cultivo agrícola, que nos anos
seguintes ocupa outras partes da propriedade, alternadamente. A segunda é o
plantio de árvores comerciais nas pastagens: as árvores oferecem sombra para o
gado e depois podem ser vendidas. “Nada impede que em uma mesma fazenda exista
uma integração entre lavoura, pecuária e floresta”, diz ele.
A área de vegetação nativa a ser
recuperada, de acordo com a meta do plano do governo federal, corresponde a
mais da metade dos 21 milhões de hectares que representam o déficit nacional de
vegetação nativa no país, medido pela soma das áreas de matas nativas que os
proprietários rurais devem, por lei, manter em suas terras ou nas proximidades
de rios e córregos. “A recuperação da vegetação nativa é muito importante,
principalmente em áreas de nascentes”, ressalta Sano. “Se não preservarmos as
nascentes, em alguns anos poderemos não ter mais água nem para beber.”
0 Comentários