ainda da tempo para a salvação?



Caranguejada de risco
Crustáceos do litoral paulista acumulam metais pesados e exibem alterações orgânicas
CARLOS FIORAVANTI | Edição 225 - Novembro de 2014




Pouco antes das oito da manhã, em frente a seu laboratório, o biólogo Marcelo Pinheiro conta como ajudou a construir este campus da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em São Vicente, onde é professor há 10 anos, e faz uma conta rápida: já deve ter aberto e examinado 12 mil caranguejos-uçá desde 1998. Ele gosta de uma boa caranguejada, mas não se arrisca a comer nenhuma feita com os crustáceos da região de Santos e São Vicente. “Não faça isso”, ele desaconselha.

Pinheiro e sua equipe verificaram que quatro dos seis metais pesados avaliados por eles – cádmio, cobre, chumbo e mercúrio – ocorreram em níveis superiores aos permitidos por lei em amostras de água, sedimento e nos próprios caranguejos dos manguezais dos municípios paulistas de Cubatão, Bertioga, Iguape, São Vicente e Cananeia. Nas regiões com maior concentração desses metais, os caranguejos apresentavam uma proporção maior de células com alterações genéticas associadas à ocorrência de malformações.

O pior resultado, com contaminação ampla, foi Cubatão. De acordo com o levantamento, detalhado na tese de doutorado de Luís Felipe de Almeida Duarte, apresentada em maio, as únicas áreas livres de metais pesados estavam no município de Peruíbe, próximo à Estação Ecológica de Jureia-Itatins, onde Pinheiro não hesitaria em pedir uma caranguejada ou um ensopado de uçá.

Essa espécie (Ucides cordatus), de garras lilás e carapaça em geral azul-celeste ou amarelada, é encontrada em manguezais ao longo do litoral brasileiro, do Amapá a Santa Catarina. Por causa da degradação dos manguezais e da exploração intensiva, a produção, totalmente artesanal, decresceu, apesar do aumento da captura. O Ministério do Meio Ambiente registrou 6,8 mil toneladas em 2007, menos da metade das 15 mil toneladas de 1994. Essa queda é acompanhada de um elevado índice de perda por más condições de transporte, que, segundo proposta da Embrapa Meio Norte, no Piauí, poderia ser reduzido de 55% para 5% com o uso de caixas plásticas com camadas de espuma umedecida com água do estuário.

Segundo Pinheiro, a água é o principal veículo de dispersão de metais. Na Baixada Santista a água disponível para consumo humano é captada, principalmente, na represa Billings e no rio Pilões, ainda que outros rios do planalto paulista abasteçam os estuários da região. “Não sabemos a qualidade dessa água. Não me surpreenderia que chegasse ao litoral contaminada”, diz. As fábricas de Cubatão, antes muito poluidoras, “instalaram filtros, mas desconheço se permitem análises mais apuradas dos resíduos liberados nos rios desse município”. Em Iguape, a fonte de metais pesados são os resíduos de mineração que descem o rio Ribeira de Iguape. Além disso, poucos municípios da Baixada Santista tratam todo o esgoto residencial e industrial antes de o lançar ao mar, e embalagens plásticas e outras formas de lixo, incluindo peças de televisão e brinquedos, se espalham sobre os manguezais das ilhas próximas, protegidos por lei contra a ocupação humana.


Em Bertioga, onde a equipe da Unesp não esperava encontrar caranguejos contaminados, foi detectada uma possível fonte poluente adicional: um antigo lixão, desativado em 2011 e hoje coberto, mas que poderia estar liberando substâncias químicas indesejadas para o rio Itapanhaú, onde estavam as três áreas analisadas. “Não há mais chorume vazando”, assegura Marisa Roitman, secretária de Meio Ambiente de Bertioga. Segundo ela, está sendo feita uma investigação para ver se o local precisaria ser descontaminado. “Não há ocupação industrial que possa ter acarretado poluição por metais pesados em Bertioga”, ela diz. Pinheiro conta que não teve acesso a um levantamento de indústrias de Bertioga. Em termos práticos, há incerteza sobre as fontes de poluição e, portanto, como poderiam ser combatidas. “Ainda desconhecemos os níveis de metais pesados inerentes aos sedimentos de nosso estado.”

Berçário contaminado

Pinheiro vê que a poluição sem controle e de origem incerta está modificando o equilíbrio ecológico do manguezal, a face menos poética da mata atlântica. O manguezal é rico e pulsante. Protege da erosão a linha da costa e funciona como berçário para peixes e crustáceos. A matéria orgânica concentrada neles fornece alimento para 50% a 80% dos pescados do mundo. Mas o manguezal também é feio e cheira mal por causa da alta quantidade de matéria orgânica misturada a seus finos sedimentos, aos quais aderem metais pesados. “Qualquer mudança de pH ou de salinidade”, diz Pinheiro, “provoca a liberação dos componentes químicos aprisionados aos sedimentos”.

A equipe da Unesp verificou que os caranguejos-uçá dos poluídos manguezais de Cubatão têm 2,6 vezes mais células com micronúcleos – fragmentos de DNA encapsulados – que os da Jureia, uma área sem poluição. Quanto mais micronúcleos, mais irregular foi a divisão celular e, portanto, maior o risco de os bichos apresentarem malformações. Em 2012, Pinheiro coletou em Cubatão um uçá muito diferente, com uma das pinças apresentando cinco dedos fixos em vez de um. Amostras de hemolinfa examinadas ao microscópio indicaram uma das possíveis causas da malformação: o bicho tinha 11 células com micronúcleos em cada conjunto de mil células avaliadas – o normal, como na Jureia, seriam dois por mil. “Ainda desconhecemos a frequência de malformações na população, mas já percebemos que em Cubatão ela supera a das demais áreas estudadas. O histórico de poluição da região ainda é a explicação mais evidente”, diz ele.

Lixo se acumula em manguezal de São Vicente, no litoral paulista
Nicholas Kriegler, de sua equipe, está investigando o número de micronúcleos em outras duas espécies de caranguejos de manguezais: o Aratus pisonii, que vive em árvores e se alimenta de folhas verdes, e o Goniopsis cruentata, também chamado de maria-mulata ou aratu, de carapaça escura, patas vermelhas e dieta mais ampla, que inclui caranguejos menores. Os dados preliminares mostram que a frequência de alterações tem se mantido: elas são mais comuns nos animais de áreas poluídas do que nos de manguezais preservados.

Outros grupos de organismos marinhos apresentaram alterações semelhantes. Em 2004 e 2005, Camilo Seabra, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Santa Cecília (Unisanta), ambas em Santos, trouxe mexilhões (Perna perna) de um cultivo de Caraguatatuba, instalou-os em gaiolas na baía de Santos e, três meses depois, detectou sinais de contaminação por metais, principalmente chumbo, zinco, mercúrio e cromo, este último acima do limite recomendável para consumo humano. Em outro estudo, ostras do gênero Crassostrea trazidas de um cultivo de Paranaguá, no Paraná, apresentaram mais alterações de DNA do que o normal depois de mantidas por um mês no estuário de Santos.

Em um peixe consumido na região, o robalo (Centropomus parallelus), ele encontrou 10 vezes mais micronúcleos do que o verificado na mesma espécie em Cananeia. Talvez em parte por isso, de 10 robalos coletados na costa em uma região próxima a uma área residencial de São Vicente, um apresentava um tumor cutâneo próximo a um dos olhos. Segundo Pereira, alterações como essa são provavelmente causadas pelo despejo de esgoto residencial e industrial não devidamente tratado.
Hemolinfa de caranguejo, corada para análise

As agressões que causam essas modificações nas células de caranguejos, ostras, mariscos e peixes também refletem mudanças na estrutura das comunidades dos seres vivos que habitam o manguezal. A degradação ambiental poderia favorecer o predomínio de alguns grupos de espécies nos manguezais poluídos e de outros nos manguezais limpos. Michel Angeloni, da equipe da Unesp, verificou que em manguezais da Jureia predominam as formigas do gênero Crematogaster, enquanto nos de São Vicente as mais encontradas são as lava-pés, do gênero Solenopsis. A vegetação também parece se modificar. Enquanto caminha pelo manguezal de uma das ilhas de São Vicente, Pinheiro se agacha e colhe um propágulo – um embrião – sinuoso de Rhizophora mangle, árvore conhecida como mangue-vermelho, e comenta: “Isso é atípico. A raiz deveria ser retinha.”

Estariam os caranguejos também mais frágeis? Pinheiro se fez esta pergunta em 2012, quando encontrou um crustáceo parasita (isópodo) de um centímetro de comprimento na cavidade branquial de um uçá coletado em São Vicente. No início de outubro, ao avaliar 15 exemplares capturados em Cubatão, verificou que 20% deles apresentavam sanguessugas, nesse caso bem menores, presas às brânquias. Pinheiro acredita que a poluição pode comprometer a resistência dos caranguejos à infestação por parasitas e outros organismos. Além disso, enfermidades provocadas por microrganismos, como a doença letárgica do caranguejo, causada por um fungo, têm levado, desde o início dos anos 1990, a perdas de até 80% da produção em áreas como o Nordeste.

Uçá com garra defeituosa coletado em Cubatão

 


Por falta de tempo ou por não saberem quem procurar, os pesquisadores visitam pouco os órgãos públicos de gestão ambiental para apresentar os resultados de seus trabalhos, que poderiam favorecer ações preventivas contra a eventual queda na produção ou na qualidade de peixes e outros organismos. Após longos debates, pesquisadores e representantes de órgãos públicos e de catadores de caranguejos estabeleceram limites para a exploração do caranguejo-uçá no país. Só podem ser coletados adultos com carapaça medindo mais de seis centímetros de largura. A captura de machos e fêmeas é proibida no início do período reprodutivo, de 1º de outubro a 30 de novembro, e a de fêmeas durante o mês de dezembro, quando desovam. As fêmeas com ovos são poupadas o ano todo.

Uma das preocupações atuais é a possibilidade de exploração excessiva e consequente queda de produção ainda maior, já que se trata de uma espécie que demora 10 anos para atingir o tamanho máximo. Para evitar esse problema, uma proposta de plano nacional de exploração do caranguejo-uçá, do guaiamum (Cardisoma guanhumi), outra espécie de manguezal, e do siri-azul (Callinectes sapidus), divulgada em 2011 pelo Ministério do Meio Ambiente, sugere uma série de medidas como o monitoramento de poluentes, a descontaminação de estuários e manguezais e a definição de áreas de rodízio, para uma exploração mais racional e sustentável. Se os pesquisadores, associações de produtores, representantes de órgãos públicos e consumidores conseguirem se organizar e implantar essas medidas, talvez não falte caranguejo-uçá – sem metais pesados – nos próximos anos.

Projeto
Projeto Uçá III – Impacto genotóxico em populações do caranguejo-uçá, Ucides cordatus (Linnaeus, 1763) (Crustacea, Brachyura, Ucididae): avaliação e correlação com a concentração de metais pesados em cinco manguezais do estado de São Paulo (nº 2009/14725-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Marcelo Antonio Amaro Pinheiro (Unesp); Investimento R$ 230.284,91 (FAPESP).
Artigo científico
PINHEIRO, M. A .A. et al. Habitat monitoring and genotoxicity in Ucides cordatus (Crustacea: Ucididae), as tools to manage a mangrove reserve in southeastern Brazil
. Environmental Monitoring and Assessment. v. 185, n. 10, p. 8273–85. 2013.

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