Febre amarela resiste


Evidências científicas indicam que dose fracionada gera efeito protetor, mas não há consenso sobre sua duração


Edição 264
fev. 2018






Do final de janeiro até o início de março, quase 22 milhões de moradores de 77 municípios de São Paulo, do Rio de Janeiro e da Bahia devem receber a vacina fracionada – equivalente a 1/5 da dose completa – contra febre amarela, considerada a melhor estratégia para deter a epidemia de febre amarela de transmissão silvestre, responsável por 907 casos e 314 mortes em todo o país de junho de 2016 a janeiro de 2018. Anunciada no início de 2018, a decisão do Ministério da Saúde de fracionar a vacina apoia-se principalmente na impossibilidade de atender com a dose inteira todos os moradores das áreas de risco e daquelas em que o vírus causador da doença deve chegar nos próximos meses.

Em 2017, o Instituto Tecnológico em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Rio de Janeiro e único fabricante nacional, ampliou a produção mensal de 4 milhões para 6 milhões de doses e cessou as exportações, para priorizar o mercado interno. Ainda assim, a produção não tem sido suficiente para acompanhar o ritmo de propagação da febre amarela silvestre. Desde novembro de 2016, o vírus causador da doença – transmitido pelos mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes, que vivem em matas – avançou com rapidez inesperada em regiões antes consideradas livres da doença de Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro, cujos moradores, de modo geral, não tinham sido vacinados.

As longas filas que se formaram diante dos postos de vacinação das grandes cidades no início de janeiro, antes do início da campanha intensiva de vacinação, indicavam a apreensão das pessoas, que buscavam a dose inteira, enquanto era possível, por acharem que a fracionada poderia não ter a mesma eficácia. Para contribuir para o debate sobre a atual estratégia de combate à epidemia, Pesquisa FAPESP entrevistou especialistas e apresenta, a seguir, as bases científicas dessa forma de uso da vacina. Em resumo, o fracionamento conta com o respaldo de estudos científicos e deve gerar um efeito protetor contra o vírus, mas há incertezas sobre a eficácia e a duração desse efeito, além de controvérsias sobre a necessidade de doses de reforço.

A vacina fracionada
 Três testes clínicos controlados apresentaram resultados positivos sobre a imunogenicidade – a capacidade de ativar as defesas do organismo – das doses fracionadas. O primeiro foi feito pelo Bio-Manguinhos com 300 militares com idade entre 18 e 47 anos e publicado em 1988 na Journal of Biological Standardization. O segundo foi realizado na Holanda por uma equipe da Universidade de Leiden com 175 pessoas com idade entre 25 e 27 anos e publicado na PLOS ONE em 2008, indicando que 1/5 da dose normal apresentava o mesmo efeito protetor que a dose padrão. O outro foi feito pela Fiocruz no Rio de Janeiro com 749 soldados com idade média de 19,4 anos. Os participantes foram divididos em seis grupos; cada um recebeu uma dose diferente, já que se pretendia avaliar a eficácia da vacina em seis concentrações distintas: 1/1 (inteira) e frações de aproximadamente 1/3, 1/10, 1/60, 1/170 e 1/900 da dose padrão. Os resultados, publicados em 2013 na Human Vaccines & Immunotherapeutics e em 2014 na BMC Infectious Diseases, indicaram que as concentrações de até 1/10 da dose original preservavam os efeitos protetores contra o vírus induzido pela dose padrão.

Dosagens menores também levaram à produção de anticorpos, que, por si só, não é suficiente para deter o vírus, observa o farmacêutico bioquímico Olindo Assis Martins Filho, pesquisador do Instituto René Rachou, unidade da Fiocruz em Minas Gerais. Segundo ele, a melhor resposta imunogênica implica a produção equilibrada de anticorpos, de células de defesa e de mediadores conhecidos como interleucinas, que ativam as células de defesa, estimulam a produção de anticorpos e, de modo mais amplo, regulam as defesas do organismo contra microrganismos causadores de doenças (ver tabela).

Os três testes em seres humanos apresentam limitações. Em um documento de julho de 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) observou que o número de participantes e a faixa de idade são restritos, impedindo conclusões mais abrangentes. Por essa razão, crianças com até 2 anos de idade, gestantes e pessoas que passaram por transplantes de órgãos e têm doenças autoimunes ou mais de 60 anos, que não foram representadas nesses estudos, continuarão recebendo a vacina padrão. Em um estudo amplo, pesquisadores do Imperial College de Londres compararam os resultados de 12 estudos clínicos realizados entre 1965 e 2011 envolvendo 4.868 pessoas. Como detalhado em um artigo de 2016 no American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, a dose de 1/10 gerou uma resposta, medida pela produção de anticorpos neutralizantes do vírus, equivalente a 97% da dose padrão.

 Com o fracionamento, um frasco com cinco doses vacina até 25 pessoas nas áreas em que o vírus ainda não chegou LÉO RAMOS CHAVES

“Estamos absolutamente tranquilos sobre a eficácia do fracionamento”, afirma o médico veterinário Akira Homma, consultor científico sênior do Bio-Manguinhos. Com o fracionamento, um frasco com cinco doses servirá para vacinar até 25 pessoas nas áreas em que o vírus ainda não chegou, mas pode chegar logo, já que cada pessoa, em vez de 0,5 mililitro (ml) da dose padrão, receberá 0,1 ml, por meio de seringas especiais. “Com os 4 milhões de doses que temos, conseguiremos atender todo mundo”, tranquiliza.

Homma argumenta que em 2013, pressionada pela falta de vacinas, a OMS aprovou o fracionamento, também de 1/5 da dose completa, para deter a epidemia de febre amarela de outro tipo – a urbana, transmitida pelo mosquito Aedes aegypti – na África. “Funcionou muito bem”, avaliou Homma. Em campanhas de emergência, cerca de 30 milhões de pessoas foram vacinadas em Angola e na República Democrática do Congo. O surto que começou em dezembro de 2015 em Angola terminou em fevereiro de 2017, após ter causado 965 mortes nos dois países.

“A dose equivalente a 1/5 da dose completa vai proteger igualmente”, reitera o infectologista Marcos Boulos, coordenador de controle de doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP) e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Já para o médico e físico Eduardo Massad, “a vacina fracionada de fato é imunogênica, mas ninguém sabe se é realmente eficaz”. “Temos apenas evidências indiretas de que sim, porque até agora a febre amarela não reemergiu em Angola e na República Democrática do Congo”, observa Massad, professor da FM-USP.

O questionamento de Massad se apoia em dois argumentos. O primeiro é que a eficácia das doses de menor concentração não foi avaliada em modelos animais, nos quais se aplica a vacina e depois o vírus para se determinar o grau efetivo de proteção e a dosagem mais efetiva. O segundo argumento é que os resultados não são garantidos: a vacina contra dengue mostrou bons resultados nos testes clínicos iniciais, em pessoas sadias, mas um baixo desempenho na etapa seguinte de avaliação, em pessoas vacinadas que se infectaram com o vírus. “Uma coisa é produzir anticorpos, outra é não pegar a doença”, observa Massad. A resposta do organismo pode variar por pessoa e, em alguns casos, não ser suficiente para deter o vírus.


Também não se sabe se as reações serão iguais às da vacina padrão. “Supõe-se que as reações sejam equivalentes, mas a vacina fracionada não foi avaliada em grande escala na população”, acrescenta Massad. Após o surto de febre amarela em 2009 em Botucatu, com 29 casos confirmados e 11 mortes, ele coordenou o planejamento da expansão das áreas de vacinação no estado, detalhado em um artigo de 2015 na Memórias do Instituto Oswaldo Cruz.

Em janeiro, as autoridades da saúde diziam que apenas as pessoas que circulassem por áreas de risco de transmissão da febre amarela silvestre deveriam se vacinar. Era uma forma de priorizar a vacinação dos moradores dessas áreas, por onde circulam os mosquitos infectados com o vírus, e evitar que o risco de efeitos indesejados da vacina fosse maior que o da própria doença. Em São Paulo, três pessoas com menos de 60 anos morreram no início de 2018 por reação à vacina, embora, de acordo com a Secretaria de Saúde, algumas não tenham relatado as doenças prévias que as impediriam de ser vacinadas.

Duração incerta
Outra pergunta ainda sem resposta: quanto tempo deve durar o efeito protetor da vacina fracionada? Em janeiro de 2018, médicos, pesquisadores e autoridades da saúde afirmaram que a dose com 1/5 da concentração poderia manter a proteção contra o vírus por pelo menos oito anos, mas essa informação se apoia em um estudo não concluído e não publicado de pesquisadores da Fiocruz do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.

Em 2017, para conhecer a duração do efeito da vacina, a equipe da Fiocruz procurou os participantes do segundo estudo, que avaliou o efeito, medido pela imunogenicidade, das doses fracionadas em soldados do Rio. Porém, o ano em que os militares tomaram a vacina, que deveria ser o ponto inicial da avaliação da duração do efeito protetor, não consta nos artigos de 2013 e 2014. Martins Filho, que participou do segundo artigo e integra a equipe do novo estudo, diz que as doses fracionadas foram aplicadas em 2009. Dos 749 soldados que haviam participado do estudo anterior, 319 foram localizados, disseram não ter sido revacinados e aceitaram participar do novo estudo. De acordo com a Fiocruz, as análises das amostras de sangue indicaram que a maioria dos homens reavaliados teria mantido os níveis altos de anticorpos neutralizantes do vírus e de células de memória.

 Em São Paulo (acima) e em outras grandes cidades, o avanço da epidemia gerou longas filas diante dos postos de vacinação LÉO RAMOS CHAVES

O farmacêutico bioquímico Alejandro Costa, pesquisador da Iniciativa para a Pesquisa de Vacinas da OMS, conheceu os resultados do novo estudo da Fiocruz em dezembro de 2017 em uma reunião no Ministério da Saúde, em Brasília. “A evidência sobre a duração do efeito protetor no estudo da Fiocruz parece consistente, mas não está validada por um comitê de especialistas”, observa. Segundo ele, nessa reunião, uma das recomendações da OMS às equipes da Fiocruz e dos estados que adotarão a vacina fracionada foi o acompanhamento de amostras representativas da população ao longo dos próximos anos para se conhecer efetivamente a duração do efeito protetor da dose fracionada.

Doses de reforço?
A duração do efeito protetor da dose inteira também é incerta. “Não acredito que dure a vida inteira”, diz Marcos Boulos, que se lembrou de uma reunião no Ministério da Saúde em 1983. Naquele momento, os especialistas diziam que a vacina, então indicada para 10 anos, poderia durar no mínimo 30. Em 2013, diante da escassez de vacinas para enfrentar a epidemia na África, a OMS mudou a orientação e estabeleceu que uma única dose poderia valer não mais para apenas 10 anos, mas para toda a vida. O Ministério da Saúde do Brasil acatou essa diretriz em 2017.

“Nesse momento, de acordo com as diretrizes em vigor, não há necessidade de doses de reforço”, diz a médica Helena Sato, diretora de imunização da SES-SP. Em um artigo de 2013 na American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, fundamentado em 36 estudos sobre imunogenicidade em adultos, crianças e gestantes, pesquisadores do Instituto de Medicina Tropical Alexander von Humboldt, no Peru, e da OMS concluíram que o efeito protetor poderia se estender por toda a vida, dispensando a necessidade de uma dose de reforço. Esse é, porém, outro ponto controverso. Com base em um estudo da Fiocruz de Minas Gerais publicado em 2016 na Human Vaccines & Immunotherapeutics, Martins Filho argumenta que o efeito começa a cair cinco anos depois da primeira vacina e se torna crítico após 10 anos, quando 70% das pessoas vacinadas manteriam a capacidade de reagir ao vírus, justificando uma dose de reforço.

“Eu estava na reunião da OMS de 2013 e fui contra a decisão da dose única”, relata o médico virologista Pedro Vasconcelos, diretor do Instituto Evandro Chagas, de Belém. “É mais prudente vacinar no mínimo duas vezes, porque nem todas as pessoas respondem do mesmo modo.” Em um comentário na edição de fevereiro de 2018 na Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, ele defende a necessidade de uma dose de reforço e de vacinas mais modernas contra a febre amarela. A Bio-Manguinhos é um dos quatro fabricantes reconhecidos pela OMS, que alegam que o baixo custo da dose dificulta os investimentos em ampliação e novos métodos de produção. A vacina é produzida essencialmente do mesmo modo desde 1937: uma linhagem específica do vírus causador da febre amarela passa dezenas de vezes por ovos embrionados para perder força e induzir nas pessoas a produção de anticorpos e células de memória que atacarão o vírus normal, caso apareça.

A Fiocruz de Pernambuco está pesquisando um imunizante preparado com base no material genético do vírus e pretende testar novas formulações assim que possível. Já a Fiocruz do Rio trabalha em um modelo feito com base no vírus de febre amarela inativado. Os dois estudos estão, ainda, longe de qualquer conclusão. Em um artigo publicado em 2011 na New England Journal of Medicine, uma equipe da empresa Xcellerex, dos Estados Unidos, relatou que uma vacina produzida com o vírus inativado mostrou-se segura e imunogênica em um estudo com 60 pessoas com idade entre 18 e 49 anos. A GE Healthcare Life Sciences adquiriu os direitos da vacina da Xcellerex em 2012 e os vendeu a outra empresa farmacêutica, a PnuVax, em 2016. Os testes continuam.

 Centro de saúde da periferia de Kinshasa, capital do Congo, durante a campanha de vacinação para deter a epidemia de 2016WHO/E. SOTERAS JALIL

Risco de expansão
Mesmo que as campanhas de vacinação e as doses fracionadas apresentem os resultados desejados, a febre amarela tornou-se endêmica na maioria dos estados brasileiros e nos países vizinhos – já chegou a parte da Argentina, Bolívia, Paraguai, Peru, Colômbia, Equador e Venezuela. “Pode-se, com a vacinação em massa, debelar um surto de febre amarela silvestre, depois de irrompido?”, indagava-se, em 1957, o médico Caio de Souza Manso, chefe do setor de vacinação do Serviço Nacional de Febre Amarela do Ministério da Saúde. “Acreditamos que não, ou, pelo menos, não o temos conseguido.” Seus argumentos ainda valem, seis décadas depois. A vacinação protege as pessoas, mas não interrompe o ciclo de transmissão do vírus: os mosquitos infectados continuarão a picar macacos que vivem nas matas e servem como hospedeiros temporários do vírus. Outros mosquitos, ao picar os primatas silvestres, vão adquirir o vírus e eventualmente transmiti-lo para pessoas não vacinadas que moram em áreas de matas ou as visitam.

Massad inquieta-se com a possibilidade de volta da febre amarela urbana, transmitida pelos Aedes aegypti e registrada pela última vez no país em 1942: “Se os Aedes aumentarem numericamente nas áreas periféricas e resolverem picar macacos infectados e depois as pessoas, será uma tragédia”. Dois estudos publicados em 2017 na Scientific Reports sustentam essa possibilidade. No primeiro, uma equipe da Faculdade de Saúde Pública da USP verificou que os Aedes são os mosquitos predominantes em nove parques públicos da cidade de São Paulo. No segundo, uma equipe da Fiocruz do Rio, do Instituto Pasteur da França e do Instituto Evandro Chagas observou que o Aedes é tão apto a transportar o vírus da febre amarela quanto os Haemagogus e o Sabethes. “A quantidade de Aedes nas cidades atualmente é baixa, mas pode aumentar”, alerta Costa, da OMS. “Temos de intensificar a vacinação preventiva para evitar a febre amarela urbana, mais difícil de controlar que a silvestre.”

Artigos científicos
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Versão atualizada em 19/02/2018.


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