Livro
conta história da autoafirmação cultural de jovens das periferias
14 de maio de 2018
José
Tadeu Arantes| Agência FAPESP – Se fosse necessária uma prova do potencial
criativo dos jovens das áreas mais carentes das periferias, a experiência
relatada no livro O que o rap diz e a escola contradiz poderia servir de
demonstração. Escrito por Monica Guimaraes Teixeira do Amaral,
professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), e
publicado com apoio da FAPESP, o
livro conta a história de uma pesquisa realizada com estudantes de 13 a 16 anos
na Escola Municipal de Ensino Fundamental José de Alcântara Machado Filho,
situada perto da antiga favela do Real Parque, hoje urbanizada, na cidade de
São Paulo.
“Tudo que esses jovens precisam é
de uma oportunidade. E essa oportunidade em geral lhes é negada pela orientação
autoritária que predomina nas escolas públicas”, disse Amaral à Agência
FAPESP.
Os relatos e análises
apresentados no livro, que foram objetos da tese de livre-docência da
educadora, começaram a ser recolhidos em 2006, quando Amaral, à frente de um
grupo de sete pesquisadores da FEUSP, chegou ao Real Parque.
“Fomos chamados por jovens que
trabalhavam na região, como estagiárias de uma organização não governamental
que concedia bolsas de estudo para a formação de professores. Pressionadas de
um lado pelas orientações da ONG e das empresas financiadoras e, de outro,
pelas necessidades da comunidade que extrapolavam tais orientações, essas jovens
se sentiam angustiadas. Elas pediram que entrássemos na escola, onde os alunos
se encontravam em total abandono e por onde mais de uma geração havia passado
sem conseguir obter formação alguma. Entramos na escola e nela permanecemos
durante três anos, organizando atividades com os estudantes e grupos de estudo
com os professores, fazendo plantões nos três turnos, intervindo em classe
junto com os professores, em um sistema de aulas compartilhadas”, disse Amaral.
Um dos resultados concretos dessa
atividade foi a elaboração de um currículo interdisciplinar calcado na história
daquela população. E a construção de um modelo de atuação, que, agora, está
sendo estendido a outras instituições de ensino.
“Toda essa pesquisa forneceu os
fundamentos para outros projetos que envolvem a docência compartilhada entre
professores e artistas populares, que desenvolvemos atualmente em duas escolas
das periferias de São Paulo: a Roberto Mange, na Região Oeste, e a Saturnino
Pereira, na Cidade Tiradentes. Culturas ancestrais, como o maculelê, e culturas
contemporâneas, como o hip-hop, são temas desse trabalho em sala de aula”,
disse Amaral.
Os sete pesquisadores da FEUSP
distribuíram-se em várias frentes de atividade: um viria a trabalhar com a
questão indígena, outro com o hip-hop, outra com a literatura de cordel, que
resultou inclusive em um livro premiado (A rima na escola, o verso na
história, de Maíra Soares Ferreira).
“Quando chegamos, fizemos um
levantamento junto aos jovens, perguntando o que eles esperavam da escola. Ao
mesmo tempo, entrevistamos professores e coordenadores, para saber o que estava
acontecendo. De um lado, havia professores que apresentaram projetos
interessantes, mas que se sentiam totalmente desanimados, pois os projetos
sofriam o boicote sistemático da direção da escola. De outro lado, havia alunos
que tinham grandes expectativas em relação à escola, mas que lá não encontravam
nada, exceto o local onde podiam se encontrar com os colegas”, disse Amaral.
No Dia do Índio, os estudantes
retrataram diversas etnias existentes no Brasil, menos os Pankararu. Os
pesquisadores consideraram aquilo muito intrigante, uma vez que a comunidade
Pankararu, constituída pela miscigenação de indígenas, negros e sertanejos
brancos, foi a primeira a se instalar nas favelas vizinhas do Real Parque e do
Jardim Panorama. Essa população chegou ao recém-implantado bairro do Morumbi na
década de 1950, com a leva de trabalhadores nordestinos contratados para
construir o Estádio do Morumbi, o Palácio dos Bandeirantes e outras obras de
grande porte.
“Buscando conhecer o motivo dessa
omissão, descobrimos que os alunos tinham vergonha de sua origem. Quando
perguntamos em classe se havia alguém que pertencia à comunidade Pankararu,
todos se calaram. Depois de muitos titubeios, uma jovem disse: ‘Eu conheço os
Pankararu’. ‘De que maneira?’, interrogamos. ‘Meu pai é um deles’, ela
respondeu. E acrescentou: ‘Eles comem com a mão’. Era um discurso totalmente
cindido”, relatou Amaral.
Os pesquisadores estudaram a
história dos Pankararu, que verificaram ser de “sofrimento e tenacidade”: o
aldeamento forçado; a miscigenação de várias etnias indígenas, de negros e de
brancos, que se reuniram em torno do nome “Pankararu”, para ter alguma
identidade; as migrações para o Sudeste, provocadas pela pobreza; a construção
das hidrelétricas de Paulo Afonso e Itaparica, no rio São Francisco, que cortou
a relação do povo com sua ancestralidade.
Por outro lado, houve a
manutenção de elementos simbólicos e rituais, que possibilitaram que os
Pankararu preservassem sua “indianeidade” no contexto da diáspora. Informações
mais detalhadas sobre os Pankararu pode ser acessadas nos endereços https://pib.socioambiental.org/pt/povo/pankararu
e http://www.indiosonline.net/?s=Pankararu.
“Toda essa saga foi resgatada
durante a pesquisa. Hoje muitos desses jovens Pankararu são rappers, orgulhosos
de sua ancestralidade. E tive uma prova de sucesso quando, voltando à área anos
mais tarde, um menino loiro, que não tinha nada de indígena, veio me perguntar
se estava tocando bem o chocalho. Eu respondi que sim. Ao que ele afirmou:
‘Então, agora, eu posso ser um Pankararu!’. A relação havia se invertido. Se,
antes, ser Pankararu era motivo de vergonha, depois, passou a ser uma
aspiração, mesmo para quem não era”, disse Amaral.
Mas essa transformação não
ocorreu por um passe de mágica. Foi necessário superar grandes desafios.
“Quando chegamos à escola, esses estudantes se encontravam totalmente
abandonados. Pareciam crianças sem referências. Um falando sozinho, outro
repetindo slogans da TV, outra fazendo lições de professores inexistentes, e um
grupo fazendo bagunça no fundo da sala. Havia dias com seis classes sem aula,
por falta de professores. Então, eu descobri que, no meio da bagunça do fundão,
tinha batuque e cantoria. E havia um professor bom de rimas, que começou a
desafiar os meninos. Com esse estímulo, eles passaram a construir um rap, que
ficou famoso e motivou até uma reportagem de televisão”, disse.
Aqui vai
um trecho da letra desse rap (citado no livro), com a ortografia, a sintaxe e a
pontuação adotadas pelos autores:
“Às vezes
para vencer na vida é preciso ser agressivo
Somos
grupo Elementos pensamentos positivo
Nosso
governo é sinistro e só quer ganhar dinheiro
Aqui os
mano não se ilude aqui os mano é brasileiro
Por isso
eu te falo com muita convicção
O crime é
para quem é e não serve para mim não
É
‘inadmirável’uns truta da quebrada
Fazendo
157 ou seja assalto à mão armada
A falta
de emprego e ‘compreenção’
Transporta
o ‘piveti’ pra vida de ladrão
A falta
de emprego e ‘compreenção’
Mata os
sonho da pessoa e joga dentro do caixão”
O potencial crítico e criativo
dos alunos estava escondido por trás da apatia e da bagunça. Era preciso que
fosse reconhecido e acolhido. “Refletindo sobre tudo isso, entendemos que os
rumos daquela escola precisavam ser mudados. Em primeiro lugar, era preciso ter
professores. Depois, era preciso ter um currículo culturalmente relevante. Indo
adiante, era preciso construir um projeto interdisciplinar, fazendo com que as
diversas disciplinas (história, geografia, português, ciências, informática)
reconhecessem os elementos culturais que aqueles jovens estavam apresentando,
articulassem tais elementos com suas histórias de vida, para depois
articulá-los também com referências mais amplas”, argumentou a educadora.
Os professores começaram a se
reunir e a montar um projeto interdisciplinar, envolvendo rap, literatura de
cordel, repente, embolada, a história do sertão, a história do êxodo de
indígenas e nordestinos rumo ao Sul, a história da diáspora maior, africana,
através do Atlântico. Era um resgate das origens, mas que não se detinha nelas,
e seguia adiante.
“Daí veio a frase que daria
título ao livro: ‘O que o rap diz e a escola contradiz’. Porque o rap fala da
situação do jovem na periferia. Fala da discriminação vivida por eles,
principalmente em bairros de muito contraste social como o Morumbi, onde os
jovens pobres são proibidos de circular livremente. Se vão a uma grande
padaria, se vão a uma rua de condomínios luxuosos, eles são expulsos. Têm que
ficar restritos ao pedaço em que moram, e que não dispõe de nenhum espaço de
socialização, de convivência, além da escola”, disse Amaral.
“Infelizmente – e por isso eu
digo que a escola contradiz –, existe uma estrutura nas diretorias regionais de
ensino que cerceia a experimentação e a criatividade. Fica tudo na dependência
de que haja um bom diretor e bons coordenadores, suficientemente corajosos e
persistentes para bancar essa abertura”, prosseguiu.
A imagem da capa do livro, um
graffiti criado pelos artistas de rua Val OPNI e Toddy OPNI,
resume, imageticamente, a história da pesquisa. A figura central é a de uma
jovem, meio menina, meio mulher, cujo fenótipo combina elementos africanos e
indígenas, e cujo olhar expressa um misto de angústia e esperança. Com as mãos,
essa jovem faz uma magia e, como um mago que tira coelhos da cartola,
materializa no ar os elementos distintivos do hip-hop: o spray, do graffiti; os
livros, associados à escola e ao conhecimento; o microfone, do rapper; o tênis
e o CD, da dança break. No fundo, a imagem mostra a construção do Estádio do
Morumbi, feita por trabalhadores nordestinos na década de 1950, dentre eles, os
afro-indígenas da etnia Pankararu. No fundo também, na outra extremidade do
quadro, os incêndios criminosos das favelas da região, que se repetiram até
que, liderados por algumas jovens que haviam participado da pesquisa, os
moradores conseguiram registrar suas posses por usucapião e foi feita a
reurbanização da área.
O que o
rap diz e a escola contradiz: um estudo sobre a arte de rua e a formação da
juventude na periferia de São Paulo
Autora:
Mônica do Amaral - Editora:
Alameda - Ano:
2016/2017 - Páginas:
258 - Preço: R$
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